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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Abaixo assinado em defesa de Monteiro Lobato

Parte I

Eliana Schuster

Senhor Ministro da Educação Fernando Haddad,

Dispensando formalidades desnecessárias vou direto ao ponto. A Folha de São Paulo publicou em 28/10 uma matéria onde o CNE – Conselho Nacional de Educação – encaminha um parecer para depois de analisado ser homologado ou não, de sua parte. Tal parecer sugere a retirada do livro “Caçadas de Pedrinho” de autoria de Monteiro Lobato da lista de distribuição de livros em escolas públicas para o ano letivo de 2011, justificando ser a obra racista.

Pois bem. Cumpre agora adentrar no cerne da questão em primeiro momento sob a ótica literária e histórica e em segundo momento sob o aspecto jurídico do ato futuro a ser encetado. Certamente este parecer realizado pela Senhora Nilma Lino Gomes, professora da UFMG carece de conteúdo capaz de fundamentar quaisquer atos alheios futuros, serve apenas para induzir em erro pessoas de boa crença e intenção, haja vista o total desconhecimento sobre a grandiosidade da obra de Monteiro Lobato.

Lobato produziu durante toda sua carreira literária 26 títulos destinados ao público infantil, seara a qual se destaca contemporaneamente em liberdade criativa e imaginativa.

Lobato numa época em que as crianças deste país ainda eram tratadas com severidade resgatou e estimulou o onírico infantil com seus escritos, do contrário para que seria editado o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 muitas décadas mais tarde então?

Lobato visionariamente trouxe lirismo a uma realidade crua, perversa e chocante a muitos brasileiros em idade escolar, como ainda hoje diante de tanto desamor e descaso são arremessados pela vida tendo somente a instituição pública como educadora.

Lobato se doou literariamente por compaixão aos pequeninos e por paixão à literatura brasileira.

Lobato ao escrever na obra ameaçada de exclusão “Caçadas de Pedrinho”: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão". (...) "Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens. Só dizem bobagens", não faz apologia alguma ao racismo, apresenta um Brasil mais livre de preconceitos e isento de compreensões deformadas e tendenciosas, compreensões estas contemporâneas capazes exclusivamente de promover e fomentar sentimentos de inferioridade. Ele vê as pessoas como iguais, igualdade tão defendida e assegurada em nossa Constituição Cidadã promulgada em 1988 sob a égide de uma Constituinte legítima.

Lobato trabalha com graciosidade seus personagens apresentando ricos desdobramentos, do contrario por quais motivos pessoas se ocupariam em transformar “O Sítio do Pica Pau Amarelo” num seriado de infinitos episódios?

Quem de nós não se recorda das aventuras da Narizinho, das comidas deliciosas da Tia Nastácia ela que cozinhou até para São Jorge na lua, da risada feliz do Tio Barnabé, da sapiência do Visconde de Sabugosa que quase morreu empanturrado de álgebra e ainda assim ensina geografia e geologia, ajudando posteriormente a descobrir petróleo nas terras do sítio. E como ele sabe sobre petróleo... Da teimosia e tagarelice da boneca gente a Emília, das histórias embaladas pela cadeira de balanço da Vovó Benta, ou Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, uma grande mestra na geografia, do besouro Mestre Cascudo entendido sobre as questões da terra e já naquela época um bravo defensor ambiental, do Lobisomen e seu folclore assim como o Saci Pererê, do peixe o Príncipe Escamado que ficou noivo da Narizinho e levou a turma para conhecer as maravilhas do fundo do mar, do Quindim um rinoceronte craque na gramática, do Rabicó um porquinho animado que virou Marquês, da Cuca que dormia uma noite a cada sete anos e seus mirabolantes feitiços, de Pedrinho e toda sua coragem...

Lobato, ah Lobato! Lobato foi pai, mãe literato, historiador. Lobato ajudou a história brasileira se situar nos anais da cultura mundial. Não somos um povo sem história como muitos dizem isso não é verdade temos uma bela história contada por uma diversidade infinita de institutos.

Eliminar obra de Lobato da lista de distribuição de livros às escolas da rede pública brasileira é o mesmo que riscar, apagar, expurgar, aniquilar a história de um país, e para, além disso, eliminar definitivamente possibilidades de comparações dos próprios avanços entre décadas é desconsiderar nossa própria história e autoritariamente impedir que novas gerações conheçam este universo encantado, rico e tão festejado de Lobato. Uma alegação de racismo como essa é desprovida de embasamento cultural, social, histórico e humanitário. É uma análise superficial descabida e eivada de subjetividades viciadas, e, por conseguinte, impeditivos categóricos de promover um norte, um parecer e olhar extemporâneo, uma opinião substancial e consistente devido à miopia que a assola.

Rechaçar a distribuição dos livros de Lobato nas escolas da rede pública é o mesmo que, por analogia, apagar a existência e o trabalho de Alberto Santos Dumont o pai da Aviação, assim considerando. Ambos em suas genialidades contribuíram e ainda contribuem enormemente com a nossa sociedade, com a nossa cultura, com as nossas raízes.

Sob o segundo momento, o aspecto jurídico ao qual me referi anteriormente apresento-o agora.

A doutrina mais abalizada no âmbito do pós-moderno Direito Administrativo defende a afetação dos atos discricionários de qualquer funcionário público sob a égide do Poder Judiciário. Diversas jurisprudências, ou julgados sob o tema já se formaram pelos muitos tribunais deste enorme país e todas favoráveis a respeito. É um direto de qualquer cidadão adentrar o certame e questionar esta esfera de discricionariedade - inclusive os atos do Presidente da República - capaz de produzir desconformidade com os interesses e necessidades coletivas. O interesse público não se sobrepõe mais como no passado, na contemporaneidade a sociedade avança substancialmente em defesa da democracia e participação cidadã, como agora faço, por exemplo, ao exercer meu direito de manifestação pela defesa de uma das obras de Monteiro Lobato, o qual nos presenteou com um rico Patrimônio Literário Histórico Cultural.

Por último, rogo ao Ministro como cidadã, apreciadora inveterada do imortal Monteiro Lobato e por último como escritora pela permanência da obra “Caçadas de Pedrinho” na lista de distribuição às escolas da rede pública não somente para 2011, mas para que se perpetue por todos os anos futuros se transformando, por assim dizer num dogma. É o mínimo que podemos fazer como um povo civilizado, culto e de consciência.

Ainda, vale lembrar se acaso a notícia veiculada não reproduzir a verdade dos fatos, sugiro ser enviado pelo Ministro, ou pelo departamento jurídico do Ministério um ofício ao Ministério Público Federal, para que dentro das suas atribuições de Custos Legis atue, investigue, processe e puna os responsáveis obrigando-os inclusive a publicar nota de desagravo na mídia sobre o tema.

Cordialmente,

Eliana Schuster

http://www.abaixoassinado.org/abaixoassinados/7383


Parte II

Foi tópico de sucesso no Twitter: "MEC veta livro de Monteiro Lobato". E centenas de tweets indignados falavam em obscurantismo, babaquice políticamente correta, exagero.

Suspeito que grande parte sequer leu as obras de Lobato; conheceu o gênio pela adaptação do Sítio do Picapau Amarelo na TV. Perderam as delciiosas ilustrações de André Le Blanc, o texto maravilhoso do autor e... seu mórbido racismo. Na adaptação da obra para a TV, caparam o texto de Lobato para eliminar o racismo (e não só isso), e ninguém reclamou.

O que o MEC diz: o livro distribuído tem até um prefácio alertando para as impropriedades ambientais de Pedrinho, mas nada para alertar sobre o racismo. Só deve ir para as escolas se ese tema for tratado com a atenção que merece. Alguém contra isso por aí? Caramba, essa obra é para educar as crianças!

(Vi depois, claro, os críticos de sempre aproveitando o escândalo para apontar "jequice" no governo. É hilariante ver gente citando o Jeca Tatu de Lobato, outro fruto do preconceito do autor. Esse, Lobato corrigiu ainda em vida: num texto posterior ao Urupês, pede desculpas ao jeca, porque seu texto original e preconceituoso o culpava pelo atraso e, depois, o escritor descobnriu que sua aparente indolência era doença, resultado do péssimo sistema de saúde pública)

Do racismo, falei no post anterior. Vamos falar de outra coisa que mencionaram sem ler, o parecer do MEC. Muito lidas foram as matérias de jornal, que simplificaram ao ponto de desfigurar o parecer. Ele recomendou não incluir o livro "Caçadas de Pedrinho" entre as obras distribuídas à rede escolar, ou, distribuindo, acrescentar textos chamando atenção para o racismo embutido no texto, explicável pelas circunstãncias da época em que foi escrito.

Não é um arrazoado medieval o parecer do MEC, pelo contrário. Está repleto de referências elogiosas ao Lobato, e há comentários sobre como não se trata de banir seus livros das bibliotecas. Diz a nota técnica, segundo o parecer do MEC:

"A obra CAÇADAS DE PEDRINHO só deve ser utilizada no contexto da
educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos
históricos que geram o racismo no Brasil. Isso não quer dizer que o
fascínio de ouvir e contar histórias devam ser esquecidos; deve, na
verdade, ser estimulado, mas há que se pensar em histórias que valorizem
os diversos segmentos populacionais que formam a sociedade brasileira,
dentre eles, o negro.
"

Mas tem mais.

O parecer nota, ainda, que a edição bem cuidada do livro incluiu até uma introdução para chamar atenção sobre os avanços da legislação ambiental _ que já não permitiria Pedrinho nem seus fãs sairem caçando animais silvestres por aí. Mas sobre os estereótipos preconceituosos do negro e da África, não há nada. Está no livro:

"Caçadas de Pedrinho teve origem no livro A caçada da onça, escrito em
1924 por Monteiro Lobato. Mais tarde resolveu ampliar a história que
chegou às livrarias em 1933 com o novo nome. Essa grande aventura da
turma do Sitio do Picapau Amarelo acontece em um tempo em que os
animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente (IBAMA), nem a onça era uma espécie ameaçada de
extinção, como nos dias de hoje. (p. 19)."

Nota o parecer:

"Todavia, o mesmo cuidado tomado com a inserção de duas notas explicativas e de contextualização da obra não é adotado em relação aos estereótipos raciais presentes na obra, mesmo que estejamos em um contexto no qual têm sido realizados uma série de estudos críticos que analisam o lugar do negro na literatura infantil, sobretudo, na obra de Monteiro Lobato e vivamos um momento de realização de políticas para a Educação das Relações Étnico-Raciais pelo MEC, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação."

Segue o texto:

"Não se pode desconsiderar todo um conjunto de estudos e análises sobre a
representação do negro na literatura infantil (Gouveia, 2005; Lajolo, 1998; Vasconcelos,
1982; entre outros)1, os quais vêm apontando como as obras literárias e seus autores são produtos do seu próprio tempo e, dessa forma, podem apresentar por meio da narrativa, das personagens e das ilustrações representações e ideologias que, se não forem trabalhadas de maneira crítica pela escola e pelas políticas públicas, acabam por reforçar lugares de subalternização do negro.
"

A questão foi levantada por um pesquisador da UnB que trata da temática racista em obras literárias. Não duvido que haja exageros na crítica do pesqusiador; reclamar contra o tratamento dado aos "animais da África" nos textos é ir um pouco além do combate ao racismo. Mas o fato é que há, sim, racismo nas obras de Lobato, e o drama do MEC é como lidar com isso. Não se pode simplesmente derramar o racismo de um fazendeiro paulistano genial dos anos 30 sobre a cabeça das crianças negras, brancas e pardas do século XXI.

Pela lei Afosno Arinos, aliás, se Emília dissesse as barbaridades que diz dos "beiços" e da feiúra de "preta" de tia Nastácia, ela iria para a cadeia de Taubaté com a velocidade de quem cheira pó de pirlimpimpim. (Aliás, o bom senso impediu até hoje que se perseguissem os livros de Lobato como incentivadores do uso da droga. mas ninguém reclamou também que a versão da TV tenha expurgado o pó mágico que dá charme à narrativa lobatiana: não tem crianças cheirando nada para viajar nas Reinações de Narizinho televisivas).

Mais parecer:
"
b) cabe à Coordenação-Geral de Material Didático do MEC cumprir com os critérios
por ela mesma estabelecidos na avaliação dos livros indicados para o PNBE, de que os
mesmos primem pela ausência de preconceitos, estereótipos, não selecionando obras
clássicas ou contemporâneas com tal teor;
c) caso algumas das obras selecionadas pelos especialistas, e que componham o acervo do PNBE, ainda apresentem preconceitos e estereótipos, tais como aqueles que foram denunciados pelo Sr. Antônio Gomes Costa Neto e pela Ouvidoria da SEPPIR, a
Coordenação-Geral de Material Didático e a Secretaria de Educação Básica do MEC deverão exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura. Esta providência deverá ser solicitada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho e deverá ser extensiva a todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante.
"

E, ainda:

"A literatura pode ser vista como uma das arenas mais sensíveis para que tomemos providências a fim de superar essa situação. Portanto, concordando com Marisa Lajolo (1998, p. 33) analisar a representação do negro na obra de Monteiro Lobato, além de contribuir para um conhecimento maior deste grande escritor brasileiro, pode renovar os olhares com que se olham os sempre delicados laços que enlaçam literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política e similares binômios que tentam dar conta do que, na página literária, fica entre seu aquém e seu além.

Diante do exposto, constata-se a necessidade de formulação de orientações mais
específicas às escolas da Educação Básica e aos sistemas de ensino na implementação da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos."

OK, o texto do MEC mereceria surra com vara de marmelo de tia Nastácia; "olhares com que se olham" e "laços que enlaçam" são de amargar. Mas vejamos o voto da relatora Nilma Lino Gomes:

"Nos termos deste parecer, à vista do disposto no Parecer CNE/CP nº 3/2004 e na
Resolução CNE/CP nº 1/2004, é essencial considerar o papel da escola no processo de
educação e (re)educação das (e para as) relações raciais, a fim de superar o racismo, a
discriminação e o preconceito racial. A despeito do importante caráter literário da obra de Monteiro Lobato, o qual não se pode negar, é necessário considerar que somos sujeitos da nossa própria época, porém, ao mesmo tempo, somos responsáveis pelos desdobramentos e efeitos das opções e orientações políticas, pedagógicas e literárias assumidas no contexto em que vivemos.

Nesse sentido, a literatura em sintonia com o mundo não está fora dos conflitos, das tensões e das hierarquias sociais e raciais nas quais o trato à diversidade se realiza. São situações que estão presentes nos textos literários, pois estes fazem parte da vida real. A ficção não se constrói em um espaço social vazio."

Em resumo, um pesquisador sensibilizado pela luta anti-racista denunciou o livro como contrário ás diretrizes estabelecidas pelos professores para o livro didático, os especialisats do MEC analisaram a denúncia e tiveram de admitir que a obra tem elementos racistas e concluíram que, do jeito que está, não deve constar da lista de distribuição, a menos que tenha uma orientação ao professor e aos pequenos leitores, mostrando que lá em 1933 havia mais racismo no Brasil e que não se deve tomar como padrão de conduta e valor o tipo de referência depreciativa que Lobato faz a negros.

Quem ainda discorda disso, tente, só por alguns minutos, imaginar-se negro, com um filho negro, ouvindo na escola seus herois personagens dizerem que bonito mesmo é só louro de olhos azuis e cabelos cacheados, e que os negros podem até ter uma bela sintonia com a sabedoria popular, mas a ciência está com a branca Dona Benta e seus netos brancos. Ah, e aqueles grossos lábios negros que você tem não são bem lábios, são beiços. Como os do gado.

A leitura de Lobato não fará de ninguém um racista. Mas seu racismo lido sem crítica em sala de aula não seria nada educativo.

(P.S. NO Globo, um "especialista" em Lobato reclama: "na época dele er diferente; estão lendo o Lobato com olhos de 2010". É, compadre, são esses os olhos das crianças que recebem os livros didáticos distribuídos pelo MEC. Abra o seu)

http://verbeat.org/blogs/sergioleo/2010/10/o-equivocado-ataque-ao-mec-por-causa-do-monteiro-lobato.html

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